Cegueira da Intolerância
Cegueira, Lucidez e a Urgência da Tolerância Religiosa
As obras de José Saramago, especialmente Ensaio sobre a cegueira e Ensaio sobre a lucidez, oferecem metáforas poderosas para refletir sobre a diversidade religiosa e os direitos humanos. Ao tratar da cegueira não como uma deficiência física, mas como uma condição ética e social, Saramago nos convida a pensar na diferença entre olhar e ver. Olhar é ato superficial; ver exige atenção, sensibilidade e consciência. Como diz a epígrafe de seu livro:
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”
E reparar, neste contexto, é ampliar o entendimento, romper com automatismos e questionar os preconceitos naturalizados no cotidiano.
É exatamente essa “cegueira branca” — silenciosa, epidêmica e social — que nos impede de perceber o outro em sua singularidade, especialmente quando se trata da diversidade religiosa. No Brasil, ainda reina a ideia equivocada de que política, futebol e religião não se discutem — um clichê que perpetua ignorância e omissão. Sim, tudo isso se discute. E deve-se discutir com respeito, escuta e compromisso ético. O silêncio, nesse caso, não é sinal de tolerância, mas de conivência com o preconceito.
A religião continua sendo um dos temas mais sensíveis e polarizadores do nosso país. A intolerância religiosa — especialmente contra as tradições de matriz africana, como o candomblé, a umbanda e a quimbanda — ainda se expressa de forma violenta e desinformada. Essas tradições são muitas vezes reduzidas a termos pejorativos como “macumba” ou “bruxaria”, frutos de uma visão ignorante e colonizada, mantida por séculos de dominação cultural e religiosa.
A proposta educacional para o século XXI deve caminhar na direção oposta: formar cidadãos críticos, empáticos e comprometidos com uma cultura de paz, onde o respeito à diversidade — religiosa, étnica, cultural e de pensamento — não seja apenas um ideal, mas uma prática cotidiana.
Construir uma Cultura de Paz implica promover valores como o respeito à vida, a recusa à violência e a defesa das liberdades individuais. Isso exige educação, diálogo e cooperação. Mas, sobretudo, exige enxergar o outro — e não apenas olhar.
Tive uma experiência significativa nesse sentido entre 2000 e 2003, na EE Baudílio Biagi, localizada em uma comunidade popular da Zona Norte de Ribeirão Preto. Durante aulas de Ensino Religioso — parte de um projeto da Secretaria Estadual de Educação — trabalhava com os alunos a diversidade das religiões presentes no Brasil e no mundo, apresentando elementos culturais e filosóficos de diferentes tradições religiosas.
Infelizmente, fui alvo de intolerância e acusações infundadas por parte de alguns alunos, pais e até líderes religiosos. Fui chamado de “macumbeiro” e acusado de estar doutrinando os alunos, simplesmente por apresentar a pluralidade religiosa como conteúdo didático. A direção da escola e eu tivemos que esclarecer que o projeto era opcional, que o ensino não privilegiava nenhuma crença específica, e que tratava-se de educação para o respeito, não de proselitismo religioso.
Esses episódios revelam o quanto a intolerância é ensinada e naturalizada, muitas vezes a partir dos próprios espaços que deveriam promover o amor ao próximo. Há quem defenda sua fé atacando a do outro — esquecendo que o próprio Cristo afirmou:
“Amarás o teu próximo como a ti mesmo”
e
“Tudo quanto quiserdes que os homens vos façam, fazei também vós a eles.”
Se queremos um futuro menos violento e mais justo, precisamos construir pontes, e não muros. Precisamos educar para o respeito às diferenças, e isso só será possível quando pararmos de temer o outro, e começarmos a ouvi-lo.
A escola, enquanto espaço de formação humana e ética, deve ser protagonista desse processo. Trazer representantes de diversas religiões para debates abertos e respeitosos pode ser um caminho potente para desconstruir estigmas e ampliar horizontes.
O preconceito começa quando decidimos não ver. A ignorância é a escolha de manter os olhos fechados. A educação é o caminho para abrir consciências.
Comentários
Postar um comentário