Capoeira como Instrumento Libertador
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Foto de Marc Ferrez, 1888, Minas Gerais.Fonte:https://observatorio3setor.org.br/o-sofrimento-dos-escravizados-no-brasil-que-trabalhavam-em-minas/(acesso em 20/06/2025- as 14:36) |
Capoeira como Instrumento Libertador
Introdução: Capoeira, resistência e liberdade
Pensar a capoeira como instrumento de emancipação é reconhecer sua profunda conexão com a luta contra a opressão imposta aos africanos e seus descendentes durante o sistema colonial e escravocrata brasileiro. Como destaca Kabengele Munanga (2004), a escravidão não apenas retirou o homem africano de seu território, mas também o desumanizou cultural e espiritualmente, impondo uma lógica civilizatória europeia que pretendia apagar sua identidade.
A dominação simbólica: religião, cultura e apagamento
Ao serem forçados para um continente estranho, os africanos enfrentaram um processo brutal de aculturação, no qual lhes foi imposta a religião católica como forma de controle ideológico. Essa doutrina, consolidada como instrumento de poder desde o século IV d.C., foi utilizada para justificar a colonização e a desumanização dos povos africanos, dentro de um discurso eurocêntrico que confundia civilização com dominação.
Contudo, o que era para ser apagamento cultural transformou-se em reinvenção simbólica. Como observa Nei Lopes (2011), os africanos escravizados criaram sistemas de ressignificação: utilizaram os santos católicos como máscaras para continuar cultuando seus orixás, preservando sua espiritualidade, musicalidade, danças e cantos. A capoeira nasce, assim, no ventre dessa resistência cultural.
Do Atlântico Negro à resistência nos quilombos
A travessia atlântica nos tumbeiros — navios negreiros onde a morte era regra — já selecionava os mais resilientes. Muitos desses africanos eram reis, rainhas, nobres e guerreiros de nações organizadas. Ao chegarem ao Brasil, enfrentaram a escravidão, mas não sem luta.
Nos quilombos, como afirma Munanga (1999), construiu-se uma alternativa de civilização africana no território da colônia. Os quilombos não eram meras fugas, mas projetos de resistência e reconstrução cultural. A capoeira emerge nesse contexto como uma ferramenta de luta física e simbólica.
Capoeira e urbanização: da senzala à malandragem
Com o fim da escravidão, muitos ex-escravizados foram expulsos das fazendas e migraram para os centros urbanos. Surge então a figura do “malandro” ou “capadócio”, personagem marginalizado que fazia uso da capoeira como autodefesa e expressão cultural.
No início da República, o Estado passou a perseguir essas manifestações. O Decreto nº 847 de 1890 criminalizava a prática da capoeira, associando-a ao crime e à desordem. Mesmo disfarçada como dança, ela era alvo constante da repressão policial.
Heróis da resistência: Besouro Mangangá e os primeiros mestres
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Besouro Magangá- Fonte- https://pt.wikipedia.org/wiki/Besouro_Mangang%C3%A1#/media/Ficheiro:Manoel_Henrique_Pereira.webp/ (acesso em 20/06/2025- as 14:52) |
É nesse ambiente hostil que surgem figuras históricas da capoeira, como Besouro Mangangá (Manoel Henrique Pereira), cuja habilidade mítica e resistência física se tornaram lendas. Ele representava o capoeirista resistente, que enfrentava a opressão policial e racial com habilidade e coragem.
A repressão quase levou a capoeira ao esquecimento, mas a luta ganhou novo fôlego com a atuação de grandes mestres que organizaram, sistematizaram e difundiram a capoeiragem como arte, esporte e cultura.
Mestre Bimba e a Capoeira Regional
Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba, é o principal responsável por transformar a capoeira em uma prática institucionalizada. Filho de praticante de batuque — uma luta angolana —, Bimba fundiu os elementos do batuque e da capoeira primitiva para criar, em 1935, a Luta Regional Baiana.
No seu Centro de Cultura Física Regional Baiano, ele desenvolveu uma metodologia, uniformizou os treinos e criou uma sequência didática, legitimando a capoeira como prática esportiva e educativa. Assim, Bimba profissionalizou o capoeirista como educador e agente cultural.
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Mestre Bimba- https://www.gov.br/palmares/pt-br/assuntos/noticias/119deg-anos-de-mestre-bimba (acesso em 20/06/2025 as 14:57) |
Mestre Pastinha e a preservação da Capoeira Angola
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Mestre Pastinha- https://www.gov.br/palmares/pt-br/assuntos/noticias/vicente-ferreira-pastinha-mestre-de-capoeira-e-filosofo-popular(acesso em 20/06/2025 as 14:57) |
Enquanto Bimba popularizava a Capoeira Regional, outro mestre surgia para preservar a raiz ancestral da capoeira: Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha. Convidado por Raimundo Aberrê para liderar a roda da praça Gengibirra, Pastinha assumiu a missão de resgatar e reorganizar a Capoeira Angola.
Em 1952, fundou o Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA) no Largo do Cruzeiro de São Francisco, com sede no famoso casarão nº 19 do Pelourinho. Com uniforme nas cores do seu time de coração (preto e amarelo do Esporte Clube Ypiranga), Pastinha valorizava a filosofia, a ancestralidade e a ludicidade do jogo angoleiro. Sua missão era clara: preservar a alma da capoeira.
Capoeira hoje: resistência, identidade e transformação
A capoeira não é apenas uma memória de luta: ela é presente e futuro. Continua sendo um instrumento de libertação, especialmente para crianças, jovens e adultos das periferias urbanas. Atua como prática educativa, física, artística e política. Em muitos projetos sociais, é a capoeira que oferece caminhos de pertencimento, autoestima e cidadania.
Ela resgata a ancestralidade afro-brasileira, fortalece a identidade negra e promove cidadania. Como afirma Munanga (2004), é preciso ir além do reconhecimento do racismo estrutural: é necessário promover ações de valorização da cultura afrodescendente — e a capoeira é uma das ferramentas mais eficazes nesse processo.
Mas sua influência transcende as fronteiras sociais e geográficas. Nos últimos anos, a capoeira passou a ser incorporada também por classes sociais mais abastadas, que a reconhecem como prática corporal, cultural e até filosófica. Escolas particulares, academias de elite, universidades e centros culturais passaram a incluir rodas de capoeira em seus programas, demonstrando como essa arte afro-brasileira migrou da periferia para os bairros nobres, carregando consigo valores ancestrais e saberes negros.
Esse processo pode ser compreendido, como afirma Kabengele Munanga (2004), como parte do empretecimento simbólico da sociedade brasileira — ou seja, a valorização da matriz africana como parte constitutiva da cultura nacional. A capoeira, com seus cantos em iorubá, seus rituais e sua musicalidade de terreiro, está se tornando um canal de reeducação racial e cultural, quebrando barreiras e desconstruindo preconceitos.
Conclusão: a capoeira como patrimônio e prática emancipadora
A capoeira é a mais autêntica expressão da resistência afro-brasileira. É, ao mesmo tempo, arte, luta, dança, filosofia, música e fé. Fruto da dor e da genialidade de um povo que, mesmo escravizado, não se curvou. Ela resiste e liberta, transforma e cura.
Ao alcançar todas as camadas da sociedade — das vielas periféricas aos salões universitários, dos terreiros aos centros culturais de classe média alta —, a capoeira não apenas se legitima como prática nacional, mas também empretece os espaços sociais, obrigando a sociedade a olhar, reconhecer e valorizar a herança africana que durante séculos tentou suprimir.
Com o selo de patrimônio cultural nacional e mundial, a capoeira segue viva nas rodas, nas escolas, nas academias e nas praças. Mais que uma luta, é um modo de vida — e um poderoso instrumento de emancipação social, cultural e espiritual.
Referências Bibliográficas
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ABIB, Pedro. Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda. Salvador: EDUFBA, 2005.
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ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. Capoeira: A History of an Afro-Brazilian Martial Art. London: Routledge, 2005.
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LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2011.
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MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999.
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MUNANGA, Kabengele. Superando o racismo na escola. Brasília: MEC/UNESCO, 2004.
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NENEL, Mestre. Bimba: um século da capoeira regional. Mestre Nenel, Lia Sfoggia (Lua Branca) (organizadora); tradução de Valter Luís da Costa (Mascote). Salvador: EDUFBA, 2018.
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PASTINHA, Vicente Ferreira. Capoeira Angola. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1988.
REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
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