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| https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/ceara/debaixo-da-ponte-50-familias-vivem-sob-viaduto-de-fortaleza-e-dividem-historias-de-fome-e-violencia-1.3241793/acesso dia 30/07/2025 as 12:06 |
𝗗𝗲𝗯𝗮𝗶𝘅𝗼 𝗱𝗮 𝗽𝗼𝗻𝘁𝗲, 𝗱𝗲 𝗖𝗮𝗿𝗹𝗼𝘀 𝗗𝗿𝘂𝗺𝗺𝗼𝗻𝗱 𝗱𝗲 𝗔𝗻𝗱𝗿𝗮𝗱𝗲- 𝗨𝗺𝗮 𝗥𝗲𝗳𝗹𝗲𝘅𝗮̃𝗼 𝘀𝗼𝗯𝗿𝗲 𝗼 𝘁𝗲𝗺𝗮 "𝗲𝗺𝗽𝗮𝘁𝗶𝗮"
Moravam debaixo da ponte. Oficialmente, não é lugar onde se more, porém eles moravam. Ninguém lhes cobrava aluguel, imposto predial, taxa de condomínio: a ponte é de todos, na parte de cima; de ninguém, na parte de baixo. Não pagavam conta de luz e gás, porque luz e gás não consumiam. Não reclamavam contra falta dágua, raramente observada por baixo de pontes. Problema de lixo não tinham; podia ser atirado em qualquer parte, embora não conviesse atirá-lo em parte alguma, se dele vinham muitas vezes o vestuário, o alimento, objetos de casa. Viviam debaixo da ponte, podiam dar esse endereço a amigos, recebê-los, fazê-los desfrutar comodidades internas da ponte.
À tarde surgiu precisamente um amigo que morava nem ele mesmo sabia onde, mas certamente morava: nem só a ponte é lugar de moradia para quem não dispõe de outro rancho. Há bancos confortáveis nos jardins, muito disputados; a calçada, um pouco menos propícia; a cavidade na pedra, o mato. Até o ar é uma casa, se soubermos habitá-lo, principalmente o ar da rua. O que morava não se sabe onde vinha visitar os de debaixo da ponte e trazer-lhes uma grande posta de carne.
Nem todos os dias se pega uma posta de carne. Não basta procurá-la; é preciso que ela exista, o que costuma acontecer dentro de certas limitações de espaço e de lei. Aquela vinha até eles, debaixo da ponte, e não estavam sonhando, sentiam a presença física da ponte, o amigo rindo diante deles, a posta bem pegável, comível. Fora encontrada no vazadouro, supermercado para quem sabe freqüentá-lo, e aqueles três o sabiam, de longa e olfativa ciência.
Comê-la crua ou sem tempero não teria o mesmo gosto. Um de debaixo da ponte saiu à caça de sal. E havia sal jogado a um canto de rua, dentro da lata. Também o sal existe sob determinadas regras, mas pode tornar-se acessível conforme as circunstâncias. E a lata foi trazida para debaixo da ponte.
Debaixo da ponte os três prepararam comida. Debaixo da ponte a comeram. Não sendo operação diária, cada um saboreava duas vezes: a carne e a sensação de raridade da carne. E iriam aproveitar o resto do dia dormindo (pois não há coisa melhor, depois de um prazer, do que o prazer complementar do esquecimento), quando começaram a sentir dores.
Dores que foram aumentando, mas podiam ser atribuídas ao espanto de alguma parte do organismo de cada um, vendo-se alimentado sem que lhe houvesse chegado notícia prévia de alimento. Dois morreram logo, o terceiro agoniza no hospital. Dizem uns que morreram da carne, dizem outros que do sal, pois era soda cáustica. Há duas vagas debaixo da ponte.
Reflexão:
O texto apresentado é um retrato cru, poético e doloroso da realidade de muitas pessoas em situação de rua. Viver debaixo de uma ponte, como expõe a narrativa, é mais do que uma condição física — é a representação simbólica de uma vida à margem da sociedade, onde a dignidade é frequentemente negada, o olhar é desviado, e a empatia se torna um sentimento escasso.
A falta de moradia é, antes de tudo, uma crise humanitária. Porém, a maior tragédia não está apenas na ausência de um teto, mas na indiferença com que essa ausência é tratada. O trecho evidencia isso ao mostrar que os moradores da ponte são “donos” de um espaço que não pertence a ninguém — ou seja, habitam o esquecimento social. Não têm endereço, direitos reconhecidos, nem tampouco visibilidade. Vivem entre restos — de comida, de objetos, de dignidade.
A cena em que um dos personagens encontra uma posta de carne e outros ingredientes revela mais do que um simples ato de sobrevivência. É a celebração de algo raro, quase sagrado, para quem nada possui. No entanto, essa pequena festa termina em tragédia. A carne, o sal, a esperança — tudo se transforma em veneno. E é aqui que se dá o golpe mais duro: a linha tênue entre o viver e o morrer na rua pode ser um prato de comida. Para quem é invisível, até a fome é perigosa.
Essa história nos convida a refletir sobre o papel da sociedade diante de tamanha negligência. Não basta ver essas pessoas como “moradores de rua”; é preciso reconhecê-los como seres humanos, com histórias, sentimentos e sonhos como qualquer outro. O problema não está apenas nas calçadas ocupadas ou nas praças tomadas por barracos improvisados — está nos corações fechados, nas portas trancadas da solidariedade, na ausência de políticas públicas efetivas, e na cumplicidade silenciosa de quem se acostumou a desviar o olhar.
Há duas vagas debaixo da ponte, diz o texto no final, como se a morte fosse apenas a liberação de espaço. Esse encerramento cruel revela o ciclo contínuo de abandono e substituição. A cada morte, outro corpo tomará o lugar. Porque enquanto a sociedade não mudar sua postura — e enquanto empatia for privilégio e não dever — a ponte continuará tendo vagas.
É urgente resgatar a humanidade perdida nas relações sociais. É necessário enxergar, ouvir, acolher. Porque ninguém deveria morrer por comer. Ninguém deveria viver como se não existisse.
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| fonte: https://www.estadao.com.br/sao-paulo/aumento-de-moradores-de-rua-em-sp-agrava-disputa-sob-pontes-e-viadutos/?srsltid=AfmBOorgTZwgIk6x2MYKb7JXx24mqG6HLX6udVL9bW3-_zMcli88j7Cs/ acesso as 12:06/acesso dia 30/07/2025 as 12:15 |
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